A FOTO


2017-11-11

Escola Central do Konsomol 1966 / 7 - um ano na União Soviética

Este é um dos capítulos da minha participação no livro A FOTO:

XI
Vichniki

O Konsomol era a organização da juventude comunista e organizava jovens das cento e uma nacionalidades que compunham a União Soviética.
A Tecê Ká Chá, em Vichniki, nos arredores de Moscovo, ficava no meio da vasta floresta de abetos que rodeia esta cidade. O primeiro passeio na mata levou-me a um belo palácio oitocentista, à beira de um pequeno lago rodeado de arvoredo que começava a tingir-se de tons dourados e rubros adivinhando a aproximação do Outono. Tal como Anton Tchekhov descreve a região, no seu único policial Um Drama na Caça.

A pouco e pouco foram chegando umas três centenas de alunos da União Soviética e do resto mundo, enviados pelos partidos comunistas e por movimentos de libertação de África, da Ásia e da América Latina para prepararem quadros políticos. Eu, a Ana, pseudónimo que escondia o seu verdadeiro nome: Mariana, que viera a salto, comigo, de Portugal e a Maria Machado que, ali usava o nome de Leonor e chegou três semanas depois, éramos,  naquele ano lectivo, os únicos portugueses. O curso incluía o Russo, Economia Política, Filosofia, História do Movimento Comunista e Operário e História do Movimento Sindical.
A escola era constituída por um conjunto de edifícios,  alguns dos quais reservados ao alojamento dos alunos.
Três pisos tinha o prédio onde ficava o meu quarto. A sala de entrada do edifício era o reino da vigilante, uma simpática e resmungona velhota dona duma secretária atrás da qual descansava os seus entrados anos. Para nós era a Mama.
Todos a tratávamos carinhosamente mas sem lhe darmos grande oportunidade de nos governar como pressentíamos que gostava ou teria por tarefa. Difícil esta, a de manter numa certa ordem e disciplina aquela juventude endiabrada, em especial os azougados latino-americanos.
Cumprimentávamo-la a correr com um bom dia em russo mal soletrado.
— Dobréutra, Mama.
— Dobréutra taváriche— respondia-nos, matinal. 
Taváriche é camarada em russo. Era uma palavra chave na sociedade soviética. Camarada, em vez de senhor! Uma forma de tratamento que ficou da Revolução de Outubro de 1917 e que para nós era símbolo e prova da superior sociedade nova.
No nosso edifício estavam alojados jovens da Europa, da América Latina e da União Soviética. No rés-do-chão e no segundo andar ficaram os rapazes e no primeiro as raparigas. Havia búlgaros, polacos, húngaros, russos, mongóis soviéticos, casaques, azeris, cossacos e tchetchenos. Da Europa Ocidentalalém de nós portugueses,  havia estudantes de França, Itália, Berlim Ocidental, Dinamarca, Finlândia e gregos de Chipre. Da América Latina tinham vindo jovens  da Argentina, do Chile, da Colômbia, do Peru, da Nicarágua, de São Salvador, da Guatemala e do México. Vários dos estudantes lutavam na clandestinidade nos seus países, como sucedia connosco, ou em situação de guerrilha e guerra civil. Alguns vinham da guerrilha como era o caso dos guatemaltecos, chegados duma Guatemala vitima dos massacres de uma ditadura sanguinária.
Eu e a Ana fomos os primeiros a chegar e a habitar aquele casarão. Passadas duas semanas chegou a Leonor. Cumprimentei-a com a curiosidade de quem vê mais uma colega para os próximos dez meses de aulas e não como a namorada que, uns meses depois, semearia de emoções novas o curso e daria à nossa presença na Rússia uma perspectiva festiva.
A pouco e pouco foi chegando à Escola Central do Konsomol uma babilónia de gente. Alguns latino-americanos pelavam-se por namorar as russas, as finlandesas ou as dinamarquesas que ostentassem cabeleiras de um loiro prateado.
As relações entre os jovens eram bastante mais descomplexadas do que no Portugal daquele tempo. Mais ou menos como são hoje por cá. Razoavelmente desinibidas mas não faziam jus às lendas do amor livre ou da invejada devassidão dos comunistas. A sociedade soviética moderara-se, relativamente aos tempos da Revolução de Outubro, no relacionamento dos sexos.
A Leonor foi acomodada no quarto da Ana e eu acabei por ficar só no meuo que tomei como um privilégio para poder namorar à vontade.
Os primeiros meses ocupámo-los com prospecções afectivas internacionais. A Rússia, o México, a Argentina, a Guiné Bissau, Moçambique, e até o povo cossaco foram objecto de especial investigação e recreio do pequeno grupo de estudo português. Depois de um ano de clandestinidade, só amenizado nos primeiros meses por meia dúzia de encontros apaziguadores, ter tanta rapariga com quem conviver, num ambiente tão descontraído e solidário, parecia-me uma bênção caída do céu. Quase tão excitante como o estudo do marxismo-leninismo!
Com o inverno, veio a neve. Estávamos numa aula de Russo com a nossa jovem professora e especial amiga, Rosa, quando ... continua aqui

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